O preço recorde da energia no mercado de curto prazo reabriu debates
acalorados no setor elétrico sobre a possibilidade de mudanças nos
cálculos desse valor. As discussões já batem às portas do governo e
ocorrem em um momento de estimativas cada vez maiores de gastos para
cobrir o uso intensivo das térmicas e o rombo das distribuidoras de
energia, que não conseguiram contratar todo o suprimento necessário nos
leilões oficiais e ficaram vulneráveis aos preços mais elevados do
mercado "spot".
Analistas já afirmam que projeções de despesas entre R$ 15 bilhões e
R$ 18 bilhões, neste ano, ficaram defasadas com a queda acentuada dos
reservatórios e a dificuldade em enchê-los no restante do período de
chuvas. O engenheiro e consultor Humberto Viana Guimarães diz "não ter
dúvidas" em calcular gastos acima de R$ 20 bilhões com o acionamento das
térmicas. Ele foi justamente um dos primeiros nomes no mercado, ainda
em janeiro, a apontar estimativas de despesas superiores a R$ 15 bilhões
- hoje amplamente aceitas. O governo, que se recusa a encampar as
previsões, tem insistido no argumento de que o orçamento reservado pelo
Tesouro Nacional é suficiente. Há R$ 9,8 bilhões disponíveis para 2014.
Em fevereiro, o preço do megawatt-hora no mercado "spot" ficou em R$
822,83 ao longo de todo o mês, nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.
Conforme cálculos apresentados ontem a executivos do mercado pelo
Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), o preço-teto deve ser
mantido na primeira semana de março. Esse valor é o máximo permitido
atualmente pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e superou
até mesmo o recorde anterior, de R$ 569,59 por megawatt-hora, que havia
sido atingido em 2008.
Seria exagero dizer que há discussões formais e bem estruturadas, no
governo, para revisar a metodologia do preço de liquidação de diferenças
(PLD). Por enquanto, o que existe são opiniões isoladas, manifestadas
em caráter pessoal. É certo, no entanto, que mudanças na forma de
cálculo dos valores praticados no mercado de curto prazo - a fim de
baixá-los - têm sido defendidas discretamente, nos bastidores, por
dirigentes da Aneel e por conselheiros da presidente Dilma Rousseff no
setor elétrico.
"O que acontece hoje com o PLD não reflete a situação energética do
mundo real", diz um interlocutor de confiança da presidente. Hoje,
segundo esse conselheiro de Dilma, o modelo de precificação é
excessivamente sensível às chuvas e tem como referência o custo da usina
mais cara que esteja sendo acionada em todo o sistema interligado.
"Fica seco durante uma semana e o preço dispara. Vem um pé d'água
durante três dias e o preço cai pela metade. Mas nada disso quer dizer
que haja, de uma hora para outra, escassez ou sobra de energia no
sistema", argumenta essa fonte.
Uma das ideias lançadas - e que circula, no governo em caráter
informal - é calcular o preço do mercado de curto prazo pelo custo médio
de acionamento das usinas. Em vez de arrastar o preço sempre para o
custo da térmica mais cara, que contribui com um pequeno punhado de
megawatts para um parque gerador de 127 mil MW, essa metodologia teria
melhores condições de refletir a situação real do mercado.
Em relatório distribuído a clientes, duas semanas atrás, o banco J.P.
Morgan afirmou que "a manipulação dos preços 'spot' não é uma hipótese
remota". Marcos Severine, analista que assina o relatório, lembra os
efeitos de uma medida nesse sentido. Ela reduziria os valores
desembolsados pelas distribuidoras para repor os volumes de energia
descontratada. Esses desembolsos terão que ser pagos pelos consumidores,
por meio de reajustes nas tarifas, ou assumidos pelo Tesouro.
Um trio de geradoras estaduais - Cemig, Cesp e Copel - pode ter
receitas adicionais de até R$ 7 bilhões neste ano com a venda de energia
a preços elevados, segundo cálculos do J.P. Morgan. Elas têm 979 MW de
energia sem nenhuma amarra contratual e negociada no mercado "spot".
Luiz Eduardo Barata, presidente da Câmara de Comercialização de
Energia Elétrica (CCEE), responsável pelo cálculo semanal da metodologia
de preços, procura tranquilizar o mercado. "Não vejo nenhum espaço para
uma mudança neste momento."
O economista Nivalde de Castro, coordenador do grupo de estudos do
setor elétrico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem
sido um dos especialistas mais ativos em demonstrar a "transferência de
renda" causada pela suposta distorção nos preços atuais. De acordo com
Castro, os consumidores, ou o Tesouro, acabarão pagando indiretamente
uma conta bilionária a esse pequeno grupo de geradoras por causa da
queda dos reservatórios, embora o balanço estrutural de demanda e oferta
não seja preocupante, na sua visão.
Joísa Campanher Dutra, ex-diretora da Aneel e professora do Centro de
Regulação da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), prefere nem entrar no
mérito da discussão e é radicalmente contra a ideia de falar, neste
momento, sobre mudanças no preço do mercado de curto prazo. Para ela,
qualquer mudança das regras agora seria mal interpretada pelos
investidores, por mexer nas perdas e ganhos de todo o setor.
Segundo a ex-diretora, qualquer economia, ao Tesouro ou aos
consumidores, proveniente de uma intervenção no PLD pode virar um tiro
pela culatra. "Temos que passar por essa tempestade. Nenhum tipo de
aperfeiçoamento pode ser feito no calor dos acontecimentos. Medidas
arbitrárias entram na percepção de risco e acabam sendo precificadas
pelos investidores", diz Joísa.
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